Este blog tem por objetivo divulgar as idéias e as pesquisas do economista Sérgio Gobetti e criar um espaço para o debate em torno de vários temas relacionados à política econômica e às finanças públicas brasileiras.

domingo, 28 de março de 2010

Os royalties (e o petróleo) pertencem ao Rio?

Como prometi, vou tratar agora do debate filosófico-jurídico-constitucional em torno da possibilidade de mudança nas regras de distribuição dos royalties. Vou fazer isso passo a passo, para tentar tornar a exposição um pouco mais didática:
1. Em primeiro lugar, ao contrário do que tem sido dito por algumas autoridades fluminenses, o petróleo de mar (e até mesmo o de terra) pertence à União de acordo com o artigo 20 da Constituição. Poderia não ser assim: na maioria das federações descentralizadas, o petróleo em terra pertence ao estado/província (vide exemplo da Argentina e Canadá). Mas em nenhum lugar do mundo o petróleo além de 12 milhas da costa pertence a estado/província. Ou seja, não há dúvida nem constitucional nem conceitual de qualquer espécie de que petróleo produzido em alto mar é propriedade da União.
2. Em segundo lugar, como extensão da nossa primeira constatação, temos de dizer que os royalties do petróleo pertencem também à União. Isso tem a ver com a definição de royalties como uma das formas mais antigas de pagamento de direitos e propriedade. A palavra vem do inglês "royal", que significa "da realeza" ou "pertencente ao rei" e foi empregada, originalmente, para designar o direito que o rei tinha de receber pagamentos pelo uso de minerais em suas terras. E quem é o rei ou proprietário no caso do petróleo brasileiro? A União.
3. Ou seja, ao contrário do que se imagina, os royalties não são um pagamento compensatório por danos ambientais ou de outra natureza. Se fosse assim, como bem assinala Rodrigo Serra, estudioso do Rio, outras atividades econômicas geradoras de impactos ambientais também estariam sujeitas ao pagamento de royalties. Mas não estão, porque, repetindo, os royalties são uma indenização pela extração de um recurso natural finito pertencente à União e, por extensão, à sociedade brasileira. No Alaska, por exemplo, os royalties são pagos diretamente à população.
4. Em terceiro lugar, a Constituição brasileira determina (também no artigo 20) que parte dos royalties seja transferida da União para estados e municípios, de acordo com regras definidas em legislação ordinária. Ou seja, não há nada de inconstitucional em mudar as regras de distribuição por lei; muito pelo contrário, as leis que tratam da partilha dos royalties existem desde antes da Constituição e já foram alteradas depois da Constituição, com efeitos imediatos, sem que ninguém tenha questionado sua constitucionalidade.
5. Por que, no caso atual da emenda Ibsen, haveria alguma inconstitucionalidade? A redação do parágrafo primeiro da Constituição assegura aos estados e municípios "participação na exploração do petróleo nos limites do seu respectivo território, mar continental ou plataforma continental". Ou seja, o texto sugere, embora de forma não tão clara, que alguns estados e municípios produtores e confrontantes teriam direitos especiais. Dessa forma, a lei precisaria reservar a estes estados e municípios uma fatia especial, que poderia ser 90% como na atual legislação, 60% como em legislações mais antigas, mas nunca 0% como na emenda Ibsen. Essa é uma interpretação possível e plausível.
6. A definição de qual estado tem direito especial a royalties gerados pela produção na plataforma continental, entretanto, não é trivial nem direta como no caso da produção em terra. Depende de qual critério geográfico se adote para determinar se um campo de petróleo está na área de confrontação de A ou B. A legislação de 1985-1986, anterior à própria Constituição, definiu que essa delimitação ocorreria por meio de projeções ortogonais sobre a plataforma continental. Esse critério é totalmente arbitrário e, se for (como pode ser) alterado a qualquer tempo, gerará uma outra delimitação da plataforma continental, sem que isso esteja ferindo a Constituição.
7. O bom senso, portanto, recomenda que, pelo alto grau de arbitrariedade que existe por trás da escolha do tipo de projeção adotada, este critério não seja o mais importante na definição das regras e distribuição dos royalties, como é hoje pela Lei do Petróleo. Seria preciso pensar em outros critérios mais diretamente relacionados aos impactos sócio-econômicos da atividade petrolífera para nortear a distribuição de royalties entre estados e municípios. Por outro lado, não há nada de inconstitucional em ampliar a fatia dos recursos que desde 1985-1986 é distribuída entre todos os estados e municípios da federação brasileira por intermédio do fundo especial do petróleo.
8. Em resumo, para concluir, é possível e desejável que se encontre um meio termo entre o estabelecido pela legislação atual (95% reservado para estados confrontantes) e a emenda Ibsen (100% via FPM e FPE).

7 comentários:

  1. Olá Gobetti, parabéns pela iniciativa! Escrevi demais e ultrapassei o limite de caracteres. Vai por e-mail mesmo...

    O tema é relevante e merece debate sob vários aspectos que norteiam a matéria. Trata-se de tema inserido em paisagens esparsas e naturalmente complexo, sendo necessário discutir a questão sob diversos ângulos. É indiscutível que a concentração dos royalties - seja sob a forma de compensação financeira, seja sob a forma de participação especial - em alguns entes da Federação precisa ser revista. A concentração parece-me mais grave em alguns Municípios, que às vezes recebem valores exorbitantes em face da população local, como é o caso de Rio das Ostras, por exemplo. A concentração nos Municípios de Campos e Macaé precisa ser revista sim. A proporção dos royaties nas finanças municipais é infinitamente maior do que em relação às finanças estaduais, o que inviabiliza o caráter redistributivo do recurso no âmbito do próprio Estado, tornando cada vez mais evidente o desperdício que decorre de tanta concentração local.

    Mas o debate também precisa ser guarnecido de outros aspectos que devem integrar a cesta de discussão, como, por exemplo, a tributação do ICMS sobre o petróleo no destino e não na origem, o que prejudica sobremaneira as finanças do Estado do Rio de Janeiro em benefício dos consumidores do restante do país inteiro, mais ou menos afortunados, sem querer ser bairrista, embora seja carioca da gema como você bem sabe.

    Lamento, ainda, que um dos pontos mais importantes sobre o tema não esteja sendo tratado com atenção que merece, como, por exemplo, a vinculação de parte dos recursos na aplicação de determinadas ações que promovam o desenvolvimento econômico sustentável, já que se trata de recursos umbilicalmente ligado à exploração de um bem natural findável, além da possibilidade de haver mudança na matriz energética a qualquer tempo e do marco regulatório.

    Lucieni Pereira
    Especialista em controle externo
    Cidadã-Carioca

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  2. Complementando...

    No passado, os royalties foram vinculados a ações de infra-estrutura, critério alterado com o passar do tempo, embora não se possa garantir como pacífica a revogação dos dispositivos que vincularam a aplicação dos royalties em ações de infra-estrutura, o que me parece coerente e necessário, sem contar o trato com o meio ambiente. A Lei 2004 foi revogada pela Lei 9.478, porém, o artigo 27 da primeira Lei foi regulamentado por outras leis que tratam da distribuição dos recursos que não foi disciplinada na Lei recente, por isso a Lei 7525 não pode ser entendida como revogada pela revogação da Lei 2004, de 1953. Ou seja, temos uma colcha de retalho nesse assunto de regulamentação dos royalties

    A vedação da compensação financeira e, sobretudo, da participação especial em algumas despesas também precisa ser bem delineada no marco regulatório, pois hoje a vedação não é cumprida à risca. Utilizar royalties para pagamento de despesa com pessoal é extremamente perigoso, em face do caráter instável dos recursos. Questões instrumentais da atividade administrativa de monta entram nessa equação: O comprometimento com pessoal, por representar passivo de prestações sucessivas e continuadas, que se estendem além, inclusive, da fase produtiva dos servidores, alcançando-os na inatividade, é dado do regime financeiro público que demanda cuidado e atenção específicos, não sendo razoável o seu custeio no plano orçamentário a partir da utilização de recursos provenientes de uma indenização pela exploração de recursos naturais findáveis.

    Também acho que a discussão não se deve restringir aos royalties do petróleo, pois assim como o Rio de Janeiro é o maior produtor desse bem natural, outros Estados o são no caso do minério e dos recursos hídricos. É um equívoco focar a discussão no petróleo quando se trata de compensação financeira prevista no artigo 20, § 1º da Constituição da República. Assim como o petróleo é defendido como um bem de todos, a água e os minérios também são bens da União, de todos portanto. Hoje o petróleo é extremamente valorizado, outrora foi o ouro e num futuro bem próximo, bem mesmo, a vedete da vez será a água, não temos dúvida disso.

    Ainda no que se refere às finanças, é preciso discutir com muita clareza o que é indenização pela exploração do recurso natural (impacto ambiental, etc) - que se restringe às áreas diretamente afetadas - e o que é o patrimônio da União. A União, como proprietária dos bens naturais, deve, sim, distribuir o seu quinhão com todas as localidades por meio do FEP. Nesse sentido, aumentar o valor aplicado por meio do FEP parece-me muito razoável. O que não me parece razoável é querer conferir ao Rio de Janeiro e demais Estados onde se dá a exploração dos recursos naturais o mesmo tratamento a ser conferido às localidades onde tal exploração não acontece. É preciso ter muita clareza do que se discute em cada passo. Royalties não são FPE e FPM; tais fundos resultam da tributação de IR e IPI, impostos que sempre existirão enquanto houver Estado e sociedade, já os royalties não. O debate precisa pautar bem como os Estados produtores devem ser indenizados pelas agressões ao meio ambiente, por exemplo, e como a União, como proprietária dos bens naturais, deve ser retribuída por meio de um fundo nacional a ser redistribuído com todos os entes da Federação, sem prejuízo da destinação de uma parcela aos órgãos federais.

    Lucieni Pereira

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  3. Para concluir...

    Os dados das finanças do Rio de Janeiro mostram que, em 2008, 54% das despesas com inativos e pensionistas do Estado foram pagas com recursos dos royalties transferidos ao RIOPREVIDÊNCIA (ver Parecer Prévio do TCE-RJ). Vale ressaltar que despesa de pessoal não se resume à despesa de pessoal ativo, alcançando inativos e pensionistas e o artigo 8º da Lei 7.990, de 1989, proíbe a aplicação de recursos dos royalties (entendida a compensação financeira e participação especial)em despesa de pessoal.

    Por outro lado, a legislação permite utilizar tais recuros para CAPITALIZAR os regimes de previdência (RPPS). Transferências de recursos do Tesouro Estadual ou Municipal para pagamento de benefícios previdenciários são repasses para cobertura de deficit financeiro mensal, o que não se confunde com capitalização do RPPS, que deve ter um caráter de médio e longo prazo, não cabe imediatismo quando se fala em capitalização de qualquer coisa. Como excelente economista que você é, sabe perfeitamente que capitalização não se resume à transferência de uma conta para outra aplicar em seguida o recurso.

    Essas são questões instrumentais que precisam entrar na cesta do debate, atualmente muito restrito à divisão do "bolo".

    Boa sorte no seu Blog! Mais uma vez, parabéns pela escolha do tema.

    Para manter o seu Blog, pense em parcerias. Sugiro visitar o Blog da Auditar:
    http://auditorblog.blogspot.com/2010/03/auditar-divulga-nota-tecnica-sobre.html

    Para o próximo tema, pense na discussão do "teto remuneratório".
    Forte abraço.

    Lucieni Pereira
    Especialista em Controle Externo
    Cidadã-Carioca e admiradora dos trabalhos do Gobetti

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Gobetti: Mais um detalhe. Os problemas identificados na aplicação concentrada em algums Municípios não se resolve com a distrituição dos recursos com outros Estados. Isso, por si só, não garante absolutamente nada, apenas amplia o problema, pois as práticas de má gestão não são prerrogativas dos Municípios e Estados bem remunerados com royalties, in casu, os do Rio de Janeiro.

    Precisamos de normativos mais bem delineados, que constituam impeditivos para as burlas atuais. A definição de regras de transparências também ajuda bastante. A previsão de um demonstrativo específico no Relatório de que trata o artigo 165, § 3º da Constituição (RREO), com a evidenciação das receitas de royalties e despesas possíveis de aplicação bimestralmente pode contribuir, e muito, para que se possa avançar no controle da aplicação desses recursos de caráter transitório e tão expressivos em algumas localidades, à semelhança do que é feito com o FUNDEB.

    Medidas de transparência como essas ajudam a subsidiar o debate constante acerca da aplicação dos recursos dos royalties.

    Acho, apenas, que o foco da discussão não deve ser tão-somente o Rio de Janeiro. Vamos rediscutir, também, as compensações financeiras de Itaipu. Por que não? Assim como o petróleo gera bastantes royalties para o Rio de Janeiro, Itaipu gera royalties expressivos para o Paraná. Vamos, ainda, discutir os royalties recebidos pelos Estados do Norte e de Minas Gerais pela exploração de recursos minerais? A discussão precisa ser em torno dos recursos minerais que pertencem à Nação como um todo, não apenas do petróleo.

    Distribuir, por distribuir os recursos dos royalties, ainda mais em ano eleitoral, é medida que pode, perfeitamente, se confundir com prática eleitoreira, para angariar votos. Isso é perigoso e não contribui positivamente para o fortalecimento da democracia.

    Quanto à quebra dos contratos firmados segundo as regras à época vigentes, acho que precisa de estudos mais específicos e aprofundados, não sei se seria tão simples alterar a legislação assim. Acho que a emenda ao projeto de lei, se aprovada, será levada ao STF com certeza.

    Agora, sim, acho que terminei.
    Lucieni Pereira

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  6. Só para fomentar o debate, Gobetti.

    Embora o Distrito Federal consiga, sozinho, realizar uma RCL de mais de R$ 9 bilhões por ano, a União destina quanto ao Fundo Constitucional do DF para pagamento de pessoal das polícias e bombeiro e para manter as áreas de saúde e educação?

    Com uma população de cerca de 2,5 milhões de habitantes, o DF consegue, sozinho, realizar uma RCL da ordem de R$ 9 bilhões.

    Estados muito maiores em termos de população não superam muito a RCL do DF. Veja os números:

    CE - população 8,5 milhões de habitantes e RCL de R$ 8 bilhões por ano;

    BA - população de 14,6 milhões e RCL de R$ 14 bilhões por ano;

    PA - população de 7 milhões e RCL de R$ 7,9 bilhões por ano;

    SE - população de 2 milhões de habitantes e RCL de R$ 3,8 bilhões por ano

    AL - população de 3,1 milhões de habitantes e RCL de 3,5 bilhões ao ano.

    Diante disso, a sociedade também pode perguntar: por que a União deve destinar boa parte dos recursos federais para manter serviços no DF? Além do FCDF, cuja destinação federal ultrapassa a casa dos R$ 6 bilhões ao ano, o DF não mantém o Judiciário, o Ministério Público e a defensoria pública, porque o artigo 21, incisos XIII e XIV os mantêm na conta da União.
    Ao explorar o petróleo no território do Rio de Janeiro, há impactos ambientais e sociais que precisam, sim, ser recompensados. Se a recompensa é exagerada, vamos discutir sim. Se nem tudo é indenização, vamos discutir. O que não dá para aceitar é o Congresso Nacional execrar o Rio de Janeiro, como se o Estado tivesse se apropriando ilegitimamente dos recursos da Nação, enquanto o Distrito Federal não produz nada e fica com boa parte das receitas federais arredadas país afora.

    Vamos discutir os royalties no Rio de Janeiro sim, mas vamos discutir também a destinação exagerada de recursos federais para manter a estrutura de um ente da Federação que agrega tão-somente 2,5 milhões de pessoas no Planalto Central.

    Na década de 60, o Governo tomou a decisão de retirar a capital do Rio de Janeiro sem estabelecer uma regra de transição sustentável para o Estado que de repente se viu sem boa parte de sua estrutura que era o serviço público. O Estado conseguiu se manter com o turismo, algumas indústrias e com a exploração do petróleo, sem o qual, as finanças ficariam, sim, comprometidas. O ICMS sobre o petróleo não fica com o Rio de Janeiro, o Estado é a segunda maior economia e como se dá a redistribuição do FPM e FME no País, será que a maior parte fica com Rio de Janeiro e São Paulo? Há justiça na distribuição desses Fundos? Estudos mostram que não.

    A discussão, como dito, precisa ser sistêmica. Há muita coisa que precisa ser discutida, mas o foco fica sempre no Rio de Janeiro e em São Paulo.

    Lucieni Pereira

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  7. Caro Valdecy, dei uma rápida olhada. O déficit atuarial representa pouco menos de 50% do valor presente dos benefícios. Essa é a situação geral da maioria dos fundos de estados ou municípios "antigos", que já possuem um estoque considerável de aposentados. Não sou especialista na área, mas sei que existem muitos municípios cujo fundos estão "bem", até por serem novos e quase não haver aposentados. Mas sempre é bom desconfiar dessas projeções atuariais... analisá-las com cuidado, sobretudo as hipóteses utilizadas nas projeções.

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